quinta-feira, 31 de outubro de 2013

Perfil: da caçamba do caminhão à beira do campo, os 50 anos de Dunga

Treinador completa meio século de vida nesta quinta-feira entre dores e conquistas, vitórias e derrotas, mágoas e agradecimentos


Por Porto Alegre
 
No futebol ou fora dele, Dunga gosta de tudo no papel. Qualquer pedido de entrevista deve ser feito por escrito. Identificando o jornalista, o tema da pauta e o tempo estimado de conversa. As negociações de investimentos, sejam de imóveis ou postos de gasolina, ramos escolhidos para construir patrimônio, mesmo na fase inicial, são documentadas. Chega ao ponto até de preferir escrever mensagem de texto ao falar pelo celular. Dunga chega aos 50 anos assim: desconfiado.
Assumir a responsabilidade é outra característica marcante do ex-volante, capitão do tetra da Seleção e atual treinador de futebol desempregado. Nas piores crises, jamais joga a culpa em alguém. Foi assim na Copa de 1990, na qual o fracasso brasileiro foi batizado de "Era Dunga". Repetiu o feito na queda, como comandante, 20 anos depois, no Mundial da África do Sul. Nem no Internacional, primeiro e último clube no qual assumiu o vestiário, demitido no começo deste outubro de 2013, mudou. "É tudo comigo", costuma repetir. Mesma personalidade no dia a dia. Se assume um compromisso, o cumpre. E, nos que precisa se encontrar com alguém, o faz sempre com 15 minutos de antecedência. Dunga chega aos 50 anos assim: leal.
Mosaico Dunga carreira de jogador (Foto: Editoria de Arte)Dunga começa a jogar futebol na caçamba de caminhões, é dono da bola no colégio e tem percalços até virar profissional e encarar carreira de conquistas e também de decepções (Foto: Editoria de Arte)
Ter tido a experiência de morar a trabalho na Itália, na Alemanha e no Japão não mudou este filho de Ijuí, cidade pequena, não mais de 100 mil habitantes, ao norte do Rio Grande do Sul, distante 402 quilômetros de Porto Alegre. Ele mantém o jeito dos tempos de Ouro Verde, time amador do município natal, de Inter, Pisa, Fiorentina e Pescara, de Stuttgart e de Júbilo Iwata. Adora contar piadas. Fala com todos, sem distinção. Não vive sem churrasco e chimarrão, que costuma tomar com Bigode, o segurança da rua onde mora na capital gaúcha. As caminhadas pela vizinhança são feitas de chinelos, mesmo fardamento ao arrumar o jardim da casa. E, claro, tem o sotaque carregado de ‘r’, com fama de grosso - não é xingamento - do interior, com respostas curtas, firmes e invariavelmente duras. Dunga chega aos 50 anos assim: simples.
Ser líder parece o destino de um menino que sempre teve o sonho de ser jogador de futebol. E que, para alcançá-lo, precisou de empenho. Começou jogando bola nas caçambas de caminhões cujos motoristas paravam para assistir aos jogos do campeonato amador de Ijuí. Nele, teve o exemplo do pai Edelceu, maior artilheiro da região, com 155 gols. Precisou superar a mudança para a cidade grande, os problemas de excesso de peso na base do Inter, a falta de chances (apesar das constantes convocações para as seleções inferiores), o rótulo de brucutu vestindo a amarelinha principal e, na volta ao clube do coração, antes de se aposentar, o posto de reserva até salvar o time do rebaixamento no Brasileirão em 99. Ele não aceita que pairem dúvidas sobre a sua capacidade. Vive para mostrar ter condições. Dunga chega aos 50 anos assim: determinado.
Estar no ápice da vida pessoal – é casado com Evanir e tem três filhos, Gabriela, Bruno e Matheus – e da profissional – são 12 títulos como jogador e três como treinador – não o faz ser individualista. Sempre que pode, ajuda o próximo. Desde um autógrafo, uma foto. Gosta mesmo é de dar palestras motivacionais, especialmente a crianças carentes, mostrando que é possível construir uma trajetória de sucesso. Não é à toa que virou o idealizador de um projeto social, na periferia de Porto Alegre, que, passados pouco mais de dez anos, atendeu mais de 5 mil meninos e meninas. Dunga chega aos 50 anos assim: solidário.
Carlos Caetano Bledorn Verri, o Dunga, ao completar cinco décadas de vida nesta quinta-feira, é um homem multifacetado. Não é só o desconfiado das relações com os jornalistas: é o leal no relacionamento com os seus. É simples, mas não simplório. Corre atrás dos sonhos. E não esquece de ajudar. Quem quer que seja. É impossível entendê-lo analisando apenas um aspecto da sua vida. Pública ou privada. Dunga é, como todos, formado por uma série de eventos/situações/experiências. E delas chegou aonde chegou.
O início
Tudo começou por Ijuí. Pela família. A mãe Maria, professora, e o pai, Edelceu, jogador de várzea, sempre primaram pela educação dos filhos – há a irmã Rejane, igualmente dedicada a ensinar crianças. Só com os estudos em dia poderia se dedicar à bola, a grande paixão. Conseguia. Afinal, o boletim só tinha a cor vermelha na disciplina de Educação Artística. Mas não foi fácil. O estilo teimoso e brigador o prejudicava desde cedo. Era o único menino na Escola Rui Babosa que tinha uma bola. Quando se irritava com algo, a pegava e dava fim ao jogo. A ex-diretora do colégio Helinita Lopes, então, teve uma ideia: lhe deu a missão de comandar a equipe dente de leite da instituição. A responsabilidade o acalmou. Um pouco, claro.
- O apelido Dunga foi uma das coisas mais erradas da vida dele. Tinha de ser Zangado mesmo – conta Fernando Otto, atual empresário de jogadores e amigo de Dunga "desde sempre".
A dupla convivia à tarde, afinal, estudava pela manhã – em colégios diferentes. Passava muito tempo junta. Otto acompanhou o "segundo" batismo de Carlos Caetano - a segunda palavra do nome composto era uma referência ao avô paterno. Emídio Perondi, ex-presidente da Federação Gaúcha de Futebol, amigo de Edelceu, virou padrinho do menino. Viu os primeiros chutes dele no Ouro Verde, time amador de Ijuí. E lascou:
- Ele tem as coxas coladas. É carrancudo por isso. Disse que parecia o Dunga, até por ser pequeno. Pegou.
Perondi demorou a ter certeza do sucesso do afilhado. Ficou, na sua definição, ‘decepcionado’ com as primeiras observações. Temia que os Verri estivessem perto do fim no futebol. A lembrar: Caetano Verri, avô de Dunga, foi goleiro do Grêmio Foot-Ball Ijuhyense. Teve seis filhos, todos jogadores: Carlinhos, Waldemar (Bica), Dari (Marimba), Getúlio (Bugio), Edgar (Dega) e Edelceu, o pai de Dunga, que morreu há pouco mais um ano, aos 71. Edelceu iniciou e encerrou a carreira no São Luiz, equipe que atualmente disputa o Gauchão. Chegou a jogar pelo maior rival, o Gaúcho. Ao marcar um gol contra seu clube do coração, levou as mãos à cabeça, perplexo. Ademar Campos Bindé, jornalista e historiador, escreveu sobre o futebol da cidade no livro "A história do futebol em Ijuí". Criou a expressão "Dinastia Verri".
- Duvido que exista outra família no mundo que tenha tantas pessoas ligadas ao futebol – opinou Bindé, em entrevista ao GLOBOESPORTE.COM, em março.
Mosaico Dunga carreira de técnico (Foto: Editoria de Arte)Dunga em família e no período como técnico do Inter em 2013 (Foto: Editoria de Arte)
O treinador Vardir Aguirre, falecido, comandou Dunga no Ouro Verde, clube no qual foi campeão metropolitano em 1980, aos 16 anos. O definia como "volante aguerrido e com excelente vigor físico". Pediu a Perondi, influente político da região (era prefeito da cidade), que conseguisse uma chance em um clube maior. A consulta à família ganhou o "OK". E lá foi o padrinho batalhar um lugar no Inter.
O jogador chegou dois anos depois ao Beira-Rio. O treinador Abilio dos Reis implicava com o peso de Dunga. Luiz Carlos Winck, ex-lateral colorado e da Seleção, era contemporâneo. Acompanhou de perto. Virou amigo, afinal, também viera do Interior – é de Bento Gonçalves.
- Não era gordo, mas tinha muita massa. Lembro que eu era volante, ele meia direita. Formávamos o meio. E o Seu Abilio acreditou na gente. A dificuldade de adaptação era enorme. Mas sabíamos das nossas responsabilidades, dos nossos sonhos. Deu certo – recorda Winck.
Coloca um prego nas mãos, ora!"
De Dunga para o goleiro Gilmar nas Olimpíadas de 1984, após ele soltar uma bola
Os meninos moravam nos alojamentos dos Eucaliptos, antigo estádio colorado, que hoje deu lugar a empreendimentos residenciais. Foi a partir da primeira experiência profissional que Dunga virou o Dunga que se conhece hoje. O ex-goleiro Gilmar Rinaldi, 54 anos, portanto, mais velho, foi seu companheiro e amigo no time de cima do Inter. Mas é um episódio nos Jogos Olímpicos de Los Angeles, em 1984, no qual o Brasil foi representado pelo Inter, que identificou o líder que se formaria. Um líder detalhista, chato.
- Ele nunca deixava os colegas relaxarem. Peguei um cruzamento, mas a bola quase escapou. Ninguém percebeu. Menos ele, que gritou: "Coloca um prego nas mãos, ora!". Dunga é assim: líder e detalhista – lembra Gilmar, atualmente empresário.
A medalha de prata, embora a decepção, rendeu frutos. Dunga, àquela altura no Corinthians (defenderia ainda Santos e Vasco), se manteve na Seleção. Foi titular na Copa de 1990, na Itália, na qual Sebastião Lazaroni inovou com o esquema 3-5-2. A derrota nas oitavas de final para a Argentina, com gol de Caniggia, em grande jogada de Maradona, na qual driblou Dunga, o marcou (recorde no vídeo ao lado). Rendeu o título de "Era Dunga". Aquela era em que a marcação era privilegiada em relação à qualidade técnica.
Nei Oliveira, cabeleireiro de Dunga e idealizador do Trianon, uma equipe formada por jogadores famosos que se exibia pelo interior gaúcho arrecadando donativos, foi recebê-lo no aeroporto em Porto Alegre após a derrota. Viu o homem que define como "filho" abatido. Sentindo-se injustiçado pelas críticas. E deu um recado: era incompreendido.
- Dunga sabe muito de bola. Ele é simples no campo, como na vida. Desarmava, lançava e jogava curto. Como poucos. Só não tinha velocidade. Este estilo foi interpretado como grosso. Mas é um craque: só ver o que conquistou.
O apoio dos amigos e familiares ajudou, claro, mas não fechou as marcas das feridas causadas pela crítica. Não há quem não diga um pouco de como ele lidava com a situação.
- Todos perderam, mas só um foi apontado como culpado. Não entendo isso até hoje – comparou Gilmar.
- Tinham outros jogadores na jogada. Mas tem gente que só viu o Dunga. E mesmo assim ele não culpou ninguém – completou Nei.
- Foi perseguição. Mas ele assumiu a bronca. E se dedicou a mostrar que estavam errados – encerrou Wink.
- Ele não foi culpado. Foi o Alemão (outro volante) – opinou Perondi.
Tal assunto gerou lendas. Uma delas diz que Dunga guardava em casa recortes de jornais e revistas com críticas da época. As lia em momentos de busca de superação. Mas o que mudaria a história seria mesmo o trabalho em campo.
A volta por cima
Copa de 1994. Nos Estados Unidos. O Brasil há 24 anos sem ganhar. E Carlos Alberto Parreira adotando marcação. Deixando o jogar bonito de lado. Mesma tática fracassada de Lazaroni. Dunga não era o capitão, posto de Raí. Assumiu a braçadeira naturalmente durante a competição. Era líder nato. Tudo começou com a missão de "controlar" Romário. Eram colegas de quarto na concentração. Mas as críticas não cessavam. E o grupo se fechou.
- A imprensa brasileira pegou pesado. Demais. Nós sabíamos o que estava acontecendo. Parreira e Zagallo (auxiliar técnico) nos conduziram bem. E o Dunga, com toda a experiência da Copa anterior, soube nos liderar. Era o nosso exemplo. Depois da vitória contra os EUA (nas oitavas de final), sentimos que poderíamos ser campeões. E ele explodiu na final – destacou Gilmar.
A explosão foi na corrida para ir bater o pênalti no desempate com a Itália.

- Dunga sentia um contêiner nas coisas - disse Gilmar.

- Qualquer um poderia errar, menos eu - desabafou Dunga a Gilmar no vestiário do Rose Bowl, em Pasadena.

E, de acordo com o ex-goleiro, disse as seguintes frases com a taça na mão, endereçadas à imprensa, especialmente à TV Bandeirantes e aos jornalistas Eli Coimbra e Juarez Soares:
- Está aqui. É para vocês. Isso ninguém nos tira.
Frase, claro, editada. Sem os palavrões (veja no vídeo acima).
O exemplo de sucesso foi lembrado por Ricardo Teixeira para reerguer a Seleção após o fracasso de 2006. O ex-presidente da CBF consultou o amigo Perondi. Dunga nem acreditou quando foi escolhido.
- Eu batalhei por ele. Não acreditou na escolha. Mas tinha certeza do sucesso – lembra Perondi.
Ele não aceita a injustiça. E, por isso, perde a cabeça"
Nei Oliveira, amigo de Dunga
Tal relação em 90 e 94 o deixou desconfiado com a imprensa. Foi por isso que no Mundial de 2010 isolou o grupo. Impediu a realização de entrevistas exclusivas. Fechou muitos treinos. Queria distância. Ficou irritado inclusive quando o médico José Luiz Runco foi prestar auxílio a uma jornalista que estava gripada. E perdeu a linha na coletiva pós-vitória sobre a Costa do Marfim ao xingar o jornalista Alex Escobar, da TV Globo. Pediria desculpas depois.
- Ele não aceita injustiça. E, por isso, perde a cabeça. Sabe disso. Falamos, mas é o jeito dele - comentou Nei Oliveira.
A reação popular, em Porto Alegre, no desembarque no Salgado Filho após a queda para a Holanda, deu a Dunga a certeza de que o trabalho havia sido bem feito. Otto foi buscá-lo. Viu o amigo ser ovacionado. O motivo?
- Dunga erra, claro, mas é sempre sincero. Ele sempre respeitou o país. E o torcedor. Soube ser ídolo.
Mesma atitude no retorno ao Inter em 99. Teve problemas em campo, como os dribles desconcertantes de Ronaldinho Gaúcho, na época surgindo no Grêmio, na final do Gauchão. Depois, de relacionamento com o treinador Emerson Leão. Foi dar a volta por cima na última rodada do Brasileirão, ao marcar o gol da vitória sobre o Palmeiras, de Felipão, e livrar o time do rebaixamento (reveja no vídeo ao lado). Glória. Reconhecimento. E nenhuma palavra de reclamação.
- Dunga não reclama. Ele tenta mostrar que as pessoas estavam erradas – resumiu Gilmar.
Foi o que aconteceu em 1998. A gestão do presidente Jarbas Lima não queria mais Dunga. Alegava alto salário. Chegou a mostrar, em ato de desespero, um cofre vazio na sala da presidência. O debate sobre a rescisão ganhou os jornais. Dunga doou toda o dinheiro da multa a entidades assistenciais. Decisão anunciada em coletiva.
A ideia o fez criar o Instituto Dunga. Em parceria com a Associação Cristã de Moços, montou o Esporte Clube Cidadão, que atua na Restinga, bairro pobre de Porto Alegre. Já atendeu milhares de crianças.
- Dunga é especial. O lado dele no esporte, de desavenças, não nos interessa. O homem Dunga é muito superior a isso – resumiu Angela Aguiar, coordenadora da área de desenvolvimento social da ACM.
Agora, após a saída do Inter, marcada por problemas com a direção e alguns funcionários (a ponto de fazer uma limpa antes de iniciar o trabalho, pedindo a saída de pessoas em quem não confiava), tem mais tempo de ser este Dunga. Deixar fora o lado enérgico. Afinal, Dunga chega aos 50 anos assim: multifacetário.
Fonte: Globoesporte.com